quinta-feira, 30 de julho de 2009

Diário de uma médica sem fronteiras



Esta psiquiatra trocou a vida que levava em São Paulo pelo perigo - e se encontrou. Há dois anos, Carla Kamitsuji trabalha com populações vitimadas pela violência, que passam fome, enfrentam epidemias, a angústia, a depressão e as recorrentes ameaças de exércitos em guerra

Patrícia Zaidan
Revista Claudia – 05/2009

Em 2007, a psiquiatra Carla Kamitsuji, 32 anos, fechou o consultório em São Paulo, pediu demissão de três empregos, trocou os sapatos por tênis e partiu para Uganda, na África, em sua primeira missão em Médicos sem Fronteiras (MSF), organização humanitária internacional presente em mais de 70 países. Desde o grave acidente de carro que sofrera, aos 25 anos, por ter dormido ao volante, questionava sua rotina turbulenta e cheia de plantões. Não via sentido naquilo. Bem o oposto do que sente hoje ajudando a restaurar a vida de pessoas em meio a guerras, doenças, violência social e catástrofes naturais.

Depois de Uganda, Carla passou pelo Iraque e no momento está na Cisjordânia. Com a família, ela se comunica duas vezes por mês pelo Skype e, num único e-mail mensal, dá notícias a todos os amigos. A psiquiatra não tem namorado, filhos nem planos para tanto. Uma médica pode se casar durante a missão, mas, se ela engravidar em áreas endêmicas, terá de abandonar o trabalho para não oferecer riscos ao bebê.

A aridez da missão faz a psiquiatra se perguntar, constantemente, por que escolheu esse caminho. "Sei que o trabalhador humanitário está mais sujeito a infecção por HIV; sofre de solidão e stress cumulativo por ficar longe de casa, da língua nativa; enfrenta, às vezes, alojamentos sem energia elétrica, tomando banho de balde. Tudo isso o torna mais suscetível ao suicídio e ao abuso de álcool e drogas", reflete. "Mesmo assim, a resposta é clara: minha vocação é estar no mundo, entre as pessoas que têm as demandas mais agudas e urgentes. É desse modo que resolvo os meus conflitos internos e me sinto realmente feliz."

CISJORDÂNIA

No fim de 2008, o conflito entre Israel e a Faixa de Gaza se intensificou: o Exército israelense bombardeou o local para cercear o lançamento de foguetes do Hamas, o grupo radical islâmico que controla a área. Em janeiro, o saldo de mortos em Gaza chegou a 700, e o de feridos a 2,5 mil. O reflexo do pavor se estendeu à vizinha Cisjordânia, outro território palestino sob ocupação de Israel. Carla chegou a Hebron, na Cisjordânia, em 23 de janeiro de 2009 e permanecerá lá até outubro.



Quando me instalei, a cidade respirava sob um cessar-fogo. As pessoas têm medo de que o próximo alvo de bombas seja a Cisjordânia. Durante a guerra, a população passava o dia vendo os ataques na TV Al Jazeera. Não há um só árabe aqui que não tenha parentes em Gaza. Tratamos sintomas depressivos, ansiedade e pânico com técnicas da terapia cognitiva comportamental e da arte-terapia em até 12 encontros. Se há necessidade de remédio, encaminhamos para o centro de saúde mental do governo.

As crianças são as mais afetadas. Elas não querem dormir sozinhas e relatam sonhos terríveis. Uma menina cobriu suas bonecas alegando que elas não podiam mais brincar porque haviam morrido como os moradores de Gaza. Outra, de 12 anos, foi atingida por uma bala de borracha perdida, disparada por soldados israelenses no contra-ataque a garotos que atiravam pedras. Ela sofreu de insônia por 15 dias. Num outro episódio, um rapaz de 16 anos, que também atirava pedras, acabou preso. A mãe, angustiada com a prisão, perdeu o apetite, o ânimo e a concentração. Após três sessões individuais, ela apresentou melhoras. Um jovem de 18 anos, que se recusou a ficar de pé em posição de revista, tomou um tiro nas costas e teve o pulmão e duas vértebras afetados. Relata dores, falta de ar e sentimento de morte.

Eu também me cuido: uma vez por mês vou a Jerusalém para supervisão técnica e suporte psicológico com a nossa equipe. O desabafo me ajuda a administrar o impacto dos casos que ouço e a manter o equilíbrio.

Como a maioria dos atendimentos é domiciliar, passo muito tempo fora do escritório, com um motorista e uma tradutora. De folga na sexta e no sábado, posso dirigir e andar pelas ruas. Hebron é bonita e tem frutas e verduras variadas, roupas, eletroeletrônicos. As mulheres andam de véu e saia longa; as estrangeiras podem usar manga curta e saia abaixo dos joelhos. Sempre ouço a palavra salamalekum, que significa "a paz sobre você". Mas o retrato do momento, para mim, é o muro que separa palestinos e israelenses - tanto o de concreto quanto o abstrato, bem mais difícil de ser compreendido.

UGANDA

O Exército de Resistência do Senhor (LRA), de orientação fundamentalista cristã, tenta derrubar o presidente Yoweri Museveni, que está no poder desde 1986 e reage com pesados ataques. Depois de 22 anos de guerra civil, vigora no momento uma trégua, mas a população teme o LRA, que sequestra garotos e os transforma em soldados e faz das meninas escravas sexuais. Carla ficou no país de 16 de janeiro de 2007 a 7 de outubro do mesmo ano.

Em Attiak, no norte de Uganda, as pessoas vivem em campos de refugiados internos. Elas não voltam para casa com medo dos ataques do Exército oficial e do LRA - qualquer cidadão fora dos campos é considerado inimigo. As famílias ocupam tukuls (oca de tijolo e argila coberta com palha) e o acesso aos serviços básicos é precário. Minha missão era implantar um programa de saúde mental e mostrar que bem-estar envolve curtir os amigos e o trabalho, equacionar problemas e sentir-se livre.

Uganda me marcou pela riqueza do contato humano. As crianças se apegavam, queriam brincar, me chamavam de mono, que quer dizer branca. Me lembro bem de um domingo gostoso, quando almocei na casa de uma colaboradora da equipe. Sentamos no chão - não se usa mesa na região - e foram servidas as cumbucas. Não há faca nem garfo, comemos com as mãos. Também me surpreendi com o 8 de março: no Dia Internacional da Mulher ninguém trabalha, é feriado.

IRAQUE

Os Estados Unidos invadiram o Iraque em 2003 e derrubaram o ditador Saddam Hussein, que ficou 24 anos no poder. Tropas americanas com 100 mil homens continuam no país, marcado por inúmeros atentados que atingiram a população civil. A psiquiatra Carla Kamitsuji trabalhou no Iraque de 17 de fevereiro a 26 de junho de 2008.

Vivi entre Erbil e Dohuk, que não estão na zona de guerra explícita, mas sofreram explosões em 2007. A tensão emocional é relatada por todos os pacientes - seja em consequência da guerra contra o Irã (de 1980 a 1988), da opressão do regime de Saddam Hussein ou da invasão americana. A maioria dos casos, porém, era de mulheres queimadas. No mundo ocidental, as pessoas interrompem a vida ingerindo remédios. Lá, ateiam fogo no corpo.

Em Erbil, trabalhei em um hospital de emergência. Não esqueço uma mulher de 20 anos, forçada a casar com um primo. Sem ver saída, incendiou as roupas. Os curativos eram feitos sem morfina, e ela se mantinha calada. Outra teve um caso com o cunhado, o marido descobriu e a polícia entrou no meio: adultério é crime. Assim que ela recebeu alta, o marido a matou.

Já em Dohuk, participei de um projeto com deslocados internos vindos de Bagdá, Mosul e Kirkuk. Eram todos curdos e preferiam morar em barracas a se expor aos ataques xiitas ou sunitas. Fazíamos visitas domiciliares para detectar a necessidade de ajuda. Encontrei casos como o de uma adolescente que ficou apática, sem fala, depois que o pai tirou seu celular para que esquecesse a escola e os amigos que deixara para trás e se acostumasse com a realidade de refugiada.

Também foi marcante o caso da viúva de um soldado assassinado em Mosul, obrigada a abandonar a casa às pressas para não ser morta com a família. Ela apresentava transtorno de humor, chorava muito e batia nos filhos. Um dia, tentou o suicídio eletrocutando-se. Seu caso só se resolveu quando a terapeuta mostrou a foto do marido e ela, finalmente, pode se despedir dele - o que não fizera por causa da fuga da cidade. A partir daí, respondeu melhor ao tratamento e aprendeu a controlar a raiva que a fazia bater nos filhos.



Houve momentos leves, entre pessoas que queriam mostrar as belezas do país e me convidavam para visitá-las. Mas eu ficava em casa nas folgas, presa às regras de segurança. O responsável pela logística do grupo precisava ser informado de cada passo, era impossível sair a pé sozinha e sem rádio de comunicação. Fazer visitas, só com autorização: a ausência de mais de uma hora podia significar sequestro. Namorar um iraquiano, nem pensar. Os bairros com grande circulação de estrangeiros eram vetados por serem alvos de bombardeios. Eu me sentia confinada e cheguei a desenvolver sintomas de depressão. Os colegas não sabiam o que fazer. Médicos são pragmáticos, lidam com malária, ossos quebrados, mas, diante da solidão, sentem-se impotentes - ou preferem ignorar que temos fraquezas. Apesar disso, o saldo da experiência foi positivo.

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